POSSIBILIDADE DE AUMENTO DA HERANÇA DO CÔNJUGE OU COMPANHEIRO
Direito de acrescer do cônjuge/companheiro na sucessão legítima - Uma questão de construção de entendimento para a solução dos casos práticos
Quando levamos em consideração a atuação prática dos advogados nas causas que envolvam direito de família e sucessões, diversos percalços podem ser apontados como obstáculos a serem ultrapassados para o desempenho de um trabalho atual que valorize a posição ocupada pelas partes, sejam essas litigantes ou não, de forma à obtenção de resultados favoráveis amarrados à segurança jurídica.
Primeiramente, cumpre-se destacar que diversas dificuldades são encontradas no manejo do próprio Código Civil, que contém em si diversas disposições ultrapassadas pelo entendimento jurisprudencial firmado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, além de lacunas sobre determinadas situações fáticas de extrema relevância.
Por isso, é importante pontuar que o advogado familiarista/sucessionista deve sempre estar atento às novidades estampadas pelos Tribunais Superiores, bem como aos julgamentos de temas, efetuado pelos Tribunais em geral, não solucionados pela legislação pátria como forma de solução de lacunas, não podendo se dar por satisfeito em apenas saber manejar as disposições legais.
Outro instrumento de extrema importância para a evolução do próprio direito de família e sucessões em si é a construção doutrinária sobre novos temas.
É cediço que as relações familiares presentes na sociedade evoluem constantemente, motivo pelo qual resta dificultado o acompanhamento dos julgados no mesmo ritmo das novas situações fáticas a serem tuteladas.
Assim, na omissão do Poder Judiciário, pela falta de acionamento, os Doutrinadores fazem a vez de orientadores.
O que se vê de forma quase que maciça, num primeiro momento, é o posicionamento doutrinário a respeito das novas relações para que, então, sejam elas tuteladas pelo Judiciário, o que faz com que a doutrina mostre ser uma ferramenta de grande valia para novas conquistas e transformações de entendimento já consolidados.
Tal reflexão acima efetuada me atingiu de maneira mais incisiva após o surgimento de uma indagação numa das aulas sobre direito sucessório do curso de pós-graduação que frequento, quando um de meus ilustres mestres, Professor Doutor Mário Delgado, lecionou a respeito do direito de acrescer do cônjuge na sucessão legítima.
Isso porque a legislação civil não abarca tal tema em seu bojo e, conforme o próprio Doutor mencionou, o posicionamento jurisprudencial a respeito da possibilidade do direito de acrescer do cônjuge é extremamente dividido, dando margem à diversas interpretações.
Somente a título de esclarecimento, convém destacar que o direito de acrescer, segundo o que leciona o Ilustre jurista Ney de Mello Almada “é aquele reconhecido ao herdeiro ou legatário de adjudicar, ao seu quinhão ou legado, a parte de um ou mais co-sucessores conjuntos, que não hajam recebido o que lhes cabia”[1], ou seja, trata-se de “incremento” direcionado à quota parte ou ao legado, oriundo de redistribuição da parte/legado renunciado por outrem em decorrência da citada renúncia.
Quando nos deparamos com a sucessão legítima, o direito de acrescer é regulamentado pelo artigo 1.810, do Código Civil, que dita:
Na sucessão legítima, a parte do renunciante acresce à dos outros herdeiros da mesma classe e, sendo ele o único desta, devolve-se aos da subsequente.
Levando-se em consideração o teor do citado artigo, vê-se que somente os herdeiros da mesma classe poderão receber e dividir entre si a parte que incumbia ao herdeiro que renunciou, assim, por exemplo, caso um dos descendentes renuncie seu quinhão, serão beneficiados pelo direito de acrescer os demais descendentes, pois integram a mesma classe do herdeiro renunciante, ficando excluídos os ascendentes, por exemplo, em virtude de integrarem classe diversa.
Nesse sentido, convém indagar: levando-se em consideração a concorrência sucessória entre o cônjuge e os demais herdeiros, por ocasião da sucessão legítima, é possível afirmar que o cônjuge possui direito de acrescer?
Para melhor elucidação do acima exposto, convém exemplificar a questão.
Supondo-se que o falecido tenha deixado dois filhos e uma viúva, bem como que um dos filhos tenha renunciado à herança, a parte renunciada deverá ser entregue somente ao seu irmão, considerado expressamente herdeiro da mesma classe, ou deverá ser dividida entre seu irmão e sua mãe, a viúva?
Na tentativa de melhor explicitação da polêmica, mister se faz destacar que quatro são as classes de herdeiros, dispostas no artigo 1.829[2] do Código Civil, quais sejam: descendentes, ascendentes, cônjuge e colaterais.
Nessa esteira de raciocínio, poderia partir-se do entendimento de que o cônjuge, por se tratar de herdeiro de terceira classe, ficaria excluído do direito de acrescer, quando existentes descendentes ou ascendentes.
Todavia, pelo que se vislumbra dos próprios ditames do artigo supracitado, o cônjuge concorre com os herdeiros de primeira e segunda classe na sucessão legítima, quais sejam, descendentes e ascendentes, sendo titular de direito hereditário nas referidas classes. Assim, de certa forma, pode-se dizer que passa a “pertencer à mesma classe dos demais herdeiros” em virtude do instituto da concorrência[3], estando em pé de igualdade com os ascendentes e descendentes quando do exercício do direito de acrescer.
Como já afirmado alhures, a presente questão, em virtude de sua nebulosidade e ausência de previsão normativa, necessitou de aclaramento para a resolução dos casos concretos, haja vista que não era possível identificar com toda a certeza se, nos casos em que houvesse renúncia da herança por um dos herdeiros legítimos, o cônjuge também poderia exercitar seu direito de acrescer.
Visando trazer a melhor solução o CJF – Conselho da Justiça Federal –, na VI Jornada de Direito Civil sob a Coordenação Geral do Ministro Ruy Rosado de Aguiar e a Coordenação Específica da Comissão de Família e Sucessões, efetuada pelo Professor Doutor Otavio Luiz Rodrigues Junior, editou o Enunciado nº 575, que dita:
Concorrendo herdeiros de classes diversas, a renúncia de qualquer deles devolve sua parte aos que integram a mesma ordem dos chamados a suceder.
Citado enunciado possui como justificativa a própria concorrência sucessória, como criadora do direito hereditário, para balizar a possibilidade de exercício do direito de acrescer pelo cônjuge, conforme se pode verificar a seguir:
Com o advento do Código Civil de 2002, a ordem de vocação hereditária passou a compreender herdeiros de classes diferentes na mesma ordem, em concorrência sucessória. Alguns dispositivos do Código Civil, entretanto, permaneceram inalterados em comparação com a legislação anterior. É o caso do art. 1.810, que prevê, na hipótese de renúncia, que a parte do herdeiro renunciante seja devolvida aos herdeiros da mesma classe. Em interpretação literal, v.g., concorrendo à sucessão cônjuge e filhos, em caso de renúncia de um dos filhos, sua parte seria redistribuída apenas aos filhos remanescentes, não ao cônjuge, que pertence a classe diversa. Tal interpretação, entretanto, não se coaduna com a melhor doutrina, visto que a distribuição do quinhão dos herdeiros legítimos (arts. 1.790, 1.832, 1.837) não comporta exceção, devendo ser mantida mesmo no caso de renúncia.
Referido entendimento com certeza é bastante acertado, pois, se assim não fosse, o direito de acrescer do cônjuge simplesmente não existiria, o que não se pode admitir, pela ausência de proibição legal nesse sentido, conjugada ao instituto da concorrência que possibilita ao cônjuge tornar-se herdeiro, já frisado anteriormente.
Há que se ressaltar ainda que, em virtude das novas digressões acerca da equiparação sucessória entre cônjuges e companheiros[4], os ditames acima expostos também podem ser aplicados integralmente aos conviventes em união estável, ou seja, os companheiros também podem exigir o direito de acrescer.
Por fim, retomando-se então a reflexão inicial exposta no presente artigo, vislumbra-se que o posicionamento doutrinário manifestado na VI Jornada de Direito Civil, expresso pelo CJF, é essencial para o deslinde seguro dos casos concretos, por meio do acolhimento de interpretação geral dos ditames do Código Civil e seus institutos e, não, pela aplicação literal de dispositivos em separado.
Conclui-se, então, que questões como essa não podem ser vistas de maneira isolada, sem o estudo de posicionamentos jurisprudenciais e doutrinários a respeito. Trata-se de diligência mínima, que deve ser observada pelos advogados militantes na área para o desempenho de trabalho bem fundamentado.
Paula Dias Cruz
Pós-graduada em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Pós graduanda em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito
[1] Apud CAHALI, Francisco José. Direito das sucessões (livro eletrônico) – 1.ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.
[2] Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
[3] O direito de concorrência nada mais é do que direito hereditário. O cônjuge e o companheiro fazem jus a parte da herança. E quem recebe herança é herdeiro. Como se trata de direito assegurado por lei, cônjuges e companheiros são herdeiros necessários, ao menos quanto à fração a que fazem jus a título de direito concorrente. (DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões (livro eletrônico) – 3.ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015).
[4] Vide Recursos Extraordinários nº 646.721 e 878.694.