A relação entre o dano existencial e a síndrome de burnout: Qual é a responsabilidade do empregador?
Hoje, o esgotamento profissional é um fenômeno global. A condição foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma síndrome ocupacional "resultante do estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso". Importante consideramos que o trabalhador passa mais tempo inserido em seu ambiente de trabalho do que em sua própria casa. Diante desta percepção, evidente a necessidade de o ambiente de trabalho ser saudável, adequado, seguro e digno.
Vólia Bomfim Cassar leciona que o meio ambiente do trabalho deve priorizar a incolumidade física, psíquica e social do empregado e demais trabalhadores (terceirizados) e, por isso, deve ser salubre, saudável, digno e íntegro. Logo, não se limita ao local, ao endereço, ao ambiente interno, mas também ao serviço, mesmo que externo, às ferramentas, aos instrumentos de trabalho, à forma de execução das tarefas e ao modo como é tratado o trabalhador pelos colegas e superiores hierárquicos.
A Constituição Federal em seu artigo 225 estabelece que “todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Esta regra se estende ao meio ambiente do trabalho, dado ao fato que a Constituição igualmente assegura ao trabalhador o direito à saúde, e determina que se estabeleça um meio ambiente equilibrado e saudável, logo, para o atingimento da plenitude de saúde ao trabalhador, há que se exigir a higidez e o equilíbrio no meio ambiente de trabalho.
Desta forma, a integridade física e mental do trabalhador é um direito que decorre de vários princípios constitucionais, que são normas e, portanto, obrigam: princípio da dignidade da pessoa humana; princípio da valorização do trabalho; princípio da defesa do meio ambiente; princípio da redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio das normas de saúde, higiene e segurança e pelo princípio da função social da empresa. Logo, concluímos o dever coletivo de se dar cumprimento a tais determinações e tentar, ao máximo, reduzir os riscos inerentes ao trabalho. Daí porque tanto o Estado como o empregador devem tomar medidas para tornar eficaz estes comandos constitucionais. Assim, deve o empregador deve zelar pelo meio ambiente, prevenir, tomar precauções, treinar seus trabalhadores, adotar as normas pertinentes ao assunto.
A reforma trabalhista de 2017, promovida pela Lei nº 13.467 acrescentou um novo título na CLT para disciplinar o “dano extrapatrimonial” decorrente da relação de trabalho. Dentre as inovações, a figura do “dano existencial” passou a compor o nosso ordenamento jurídico, conforme redação expressa no artigo 223-B introduzido na CLT: “Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são titulares exclusivas do direito à reparação”. Sebastião Geraldo de Oliveira ensina que basicamente firmou-se a compreensão de que a lesão injusta pode causar danos à integridade psicofísica da vítima, gerar repercussões emocionais subjetivas de sofrimento e dor, mas também pode provocar uma alteração inesperada na rotina, no planejamento e na qualidade de vida da vitima.
Neste sentido, o dano existencial no Direito do Trabalho, também chamado de dano à existência do trabalhador, decorre da conduta do empregador que impossibilita o empregador de se relacionar e de conviver em sociedade por meio de atividades recreativas, afetivas, espirituais que lhe trarão bem-estar físico e psíquico, o que por conseqüência impede o trabalhador de executar os seus projetos de vida. Podemos então concluir que ocorre o dano existencial na relação de trabalho quando a empresa perpetua uma conduta que provoca uma alteração não programada na rotina de vida da vítima, prejudicando suas escolhas, suas preferências, opções de lazer, o desenrolar natural de sua agenda diária, com a imposição de um roteiro de sobrevivência não desejado.
Neste cenário apresentado, importante mencionarmos que a figura do dano existencial aparece com maior nitidez na hipótese do acidente do trabalho ou doença ocupacional. Em muitas ocasiões o acidente do trabalho ou a doença ocupacional representa para a vítima a revisão compulsória dos afazeres do seu cotidiano, o desmonte traumático do seu projeto de vida, ou o sepultamento dos sonhos quanto a possibilidade de um futuro melhor. Por tais motivos, frente aos fatores desencadeantes de stress como o excesso de duração de trabalho, a demanda e cobrança por resultados, deve o empregador tomar todos os cuidados necessários para a gestão dos níveis de stress no meio ambiente laboral, sob pena de vir a ser responsabilizado por danos à saúde e vida do trabalhador.
Jorge Luiz Souto Maior prega que o trabalho dignifica o homem, mas sob outro ângulo, é o trabalho que retira essa dignidade, impondo-lhe limites enquanto pessoa na medida em que avança sobre a sua intimidade e vida privada. Assim, o trabalho sem limites fere o princípio da dignidade da pessoa humana, podendo ocasionar sérios riscos ao trabalhador.
Dentre os danos que podem ser desencadeados na saúde do trabalhador, temos a síndrome do esgotamento profissional, conhecida de uma forma mais técnica como Síndrome de Burnout. Fabrício Lima Silva e Iuri Pinheiro lecionam que o termo “burnout” é uma composição de “burn”, queima, e “out” exterior, significando metaforicamente que a pessoa com essa condição de estresse somático e excessivo, se consome física e emocionalmente, em razão do trabalho. Em outras palavras, a expressão “burnout” traduz aquilo que deixou de funcionar por completa falta de energia. Dráuzio Varella explica que a síndrome de burnout é um distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão emocional e estresse provocados por condições de trabalho desgastantes. FONTE: ESTUDO DA ISMA-BR O sintoma típico da síndrome de burnout é a sensação de esgotamento físico e emocional que se reflete em atitudes negativas, como: ausências no trabalho, agressividade, isolamento, mudanças bruscas de humor, irritabilidade, dificuldade de concentração, lapsos de memória, ansiedade, depressão, pessimismo e baixa autoestima. Não existe uma única causa para o desencadeamento da síndrome de burnout, todavia são apontados como fatores comuns as atividades que vinculam o trabalhador diretamente ao cliente, o excesso de horas extras, alto nível de cobrança para cumprimento de metas, falta de segurança, prazos exíguos para o cumprimento de tarefas, relações tensas e conflituosas, impossibilidade de progressão e promoção no trabalho, excesso de competitividade, dentre outras. Do mesmo modo, a síndrome de burnout é também reconhecida pela previdência social como doença laboral. Conforme o anexo II do Decreto 3.048/99.
Vejamos como a jurisprudência tem se posicionado sobre o tema:
EMENTA RECURSO ORDINÁRIO PATRONAL. DOENÇA OCUPACIONAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS E INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. HAVENDO COMPROVAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE NEXO CAUSAL ENTRE AS DOENÇAS ADQUIRIDAS PELO RECLAMANTE E O EXERCÍCIO DO LABOR PRESTADO EM FAVOR DA RECLAMADA, CONFIGURANDO-SE A CULPA DA EMPREGADORA NO EVENTO DANOSO, CABÍVEL SUA RESPONSABILIZAÇÃO EM RAZÃO DO INFORTÚNIO, JÁ QUE COMPROVADOS OS ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA RESPONSABILIDADE CIVIL. DAÍ A PROCEDÊNCIA DOS PLEITOS DE INDENIZAÇÃO CORRESPONDENTE AOS SALÁRIOS DO PERÍODO ESTABILITÁRIO, DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS E INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. RECURSO NÃO PROVIDO. RECURSO ORDINÁRIO ADESIVO OBREIRO. COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. QUANTUM. MAJORAÇÃO. COMO O VALOR FIXADO PELO JUÍZO A QUO A TÍTULO DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS EM DECORRÊNCIA DE DOENÇA OCUPACIONAL NÃO GUARDA HARMONIA COM A GRAVIDADE DAS LESÕES PERPETRADAS, NÃO IMPRIMINDO, SATISFATORIAMENTE, CARÁTER PEDAGÓGICO À CONDENAÇÃO, HAJA VISTA O PODERIO ECONÔMICO DA RECLAMADA, E CONSIDERANDO-SE, AINDA, A REMUNERAÇÃO PAGA AO OBREIRO E, BEM ASSIM, A DURAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO, FAZ-SE NECESSÁRIA SUA MAJORAÇÃO. RECURSO PROVIDO. (TRT-19 - RO: 00000655420195190008 0000065-54.2019.5.19.0008, Relator: Laerte Neves De Souza, Data de Publicação: 07/02/2020) EMENTA RECURSOS ORDINÁRIOS OBREIRO E PATRONAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. DOENÇA DO TRABALHO. COMPROVADA A OFENSA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, BEM COMO A RELAÇÃO DE CAUSALIDADE COM O LABOR, A CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS É MEDIDA QUE SE IMPÕE E SUA FIXAÇÃO DEVE OBSERVAR PARÂMETROS DE RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE DIANTE DO GRAU DA OFENSA PRATICADA, DAS CONSEQUÊNCIAS PARA A VÍTIMA E DO PORTE ECONÔMICO DO OFENSOR, DENTRE OUTROS PARÂMETROS. RESULTANDO DA OFENSA DEFEITO QUE DIMINUA A CAPACIDADE LABORATIVA, AINDA QUE TEMPORARIAMENTE, É CABÍVEL E ACUMULÁVEL A INDENIZAÇÃO PELOS DANOS MATERIAIS SUPORTADOS. II. (TRT-19 - ED: 00015262920175190009 0001526-29.2017.5.19.0009, Relator: Marcelo Vieira, Data de Publicação: 14/06/2019) DOENÇA OCUPACIONAL. (SÍNDROME DE BURNOUT). PENALIZAÇÃO DO TRABALHADOR POR MEIO DA PRÁTICA DO MOBBING STRATEGICO, REPERCUTINDO ACOMETIMENTO DA PATOLOGIA QUE O LEVOU A PEDIR A APOSENTADORIA PRECOCE. DEVIDA A REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. NO CASO CONCRETO, ESTÁ EVIDENCIA A SUBMISSÃO DO TRABALHADOR A VÁRIOS CONSTRANGIMENTOS DE ORDEM MORAL, PRESSÃO PSICOLÓGICA, DISCRIMINAÇÃO E ATO DE PERSEGUIÇÃO, CARACTERIZANDO ASSÉDIO MORAL, CULMINANDO EM ACIDENTE DE TRABALHO, ANTE O ACOMETIMENTO DE MOLÉSTIA OCUPACIONAL (SÍNDROME DE BURNOUT), COM REPERCUSSÃO NA NECESSIDADE DE ACOMPANHAMENTO CONSTANTE DE MÉDICO PSIQUIATRA E PSICÓLOGA. ASSIM, CARACTERIZADAS PRÁTICAS ILÍCITAS PERPETRADAS PELO EMPREGADOR, MORMENTE EM RELAÇÃO AOS GERENTES, DENTRE ELES O RECLAMANTE, UTILIZANDO-SE DE RETALIAÇÕES, ADVERTÊNCIAS, HUMILHAÇÕES, EXPOSIÇÃO A SITUAÇÕES CONSTRANGEDORAS PERANTE OS COLEGAS DE TRABALHO, COMO FORMA DE FORÇAR A DEMISSÃO A REQUERIMENTO DO LABORISTA, TAIS FATOS SE AMOLDAM AO INSTITUTO DO ASSÉDIO MORAL ESTRATÉGICO, CONSISTENTE EM ATITUDES DESTINADAS A MINAR A AUTOESTIMA DOS TRABALHADORES, COM A FINALIDADE DE QUE ELES MESMOS ACABEM ADERINDO A UM PLANO DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA OU PEDINDO DEMISSÃO, POR ACHAREM QUE NÃO SE ENQUADRAM NO PERFIL DA EMPRESA. EM REGRA, NESTA MODALIDADE DE ASSÉDIO NÃO HÁ UMA VÍTIMA ESPECÍFICA, MAS UM GRUPO DETERMINADO DE TRABALHADORES. DIANTE DE TAL CONTEXTO, MOSTRA-SE ADEQUADA A CONDENAÇÃO DO BANCO DO BRASIL EM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, QUE DEVE SER MANTIDA NO PATAMAR DE R$ 50.000,00, POR ATINGIR DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E TER SIDO OBJETO, INCLUSIVE DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA, PARA FINS DE OBSTAR A PRÁTICA DELETÉRIA NO ÂMBITO DO RECLAMADO. É A DETERIORAÇÃO DO TRABALHADOR QUE SOLAPA A SAÚDE FÍSICA, MENTAL E EMOCIONAL DO TRABALHADOR, OCASIONANDO DOENÇA OCUPACIONAL POR MEIO DO BOSSING OU MOBBING STRATÉGICO. PLANO DE APOSENTADORIA INCENTIVADA (TRT-22 - RO: 000014201020175220001, Relator: Wellington Jim Boavista, Data de Julgamento: 01/07/2019, PRIMEIRA TURMA)
As medidas de prevenção da síndrome de burnout devem levar em consideração estratégias individuais, coletivas e organizacionais. É preciso conhecer o problema, reconhecê-lo e dominar as estratégias de enfrentamento, a fim de minimizar os efeitos negativos dela oriundos. Sendo assim, com base na teoria do risco, o empregador responde objetivamente pelos danos causados aos empregados em virtude do dever constitucional de redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Neste sentido, Souto Maior nos convida a seguinte reflexão: Aproveitando, então, o ensejo, façamos uma reflexão sobre nossa postura diante do trabalho. Temos sido escravos do trabalho? Quase não respiramos sem nosso computador? Ele – o computador – está para nós como aquela bombinha está para o asmático? Trabalhamos dia e noite, inclusive finais de semana, e não são poucas as vezes que tiramos férias para colocar o trabalho em dia? Estamos pressionados pelos “impessoais” relatórios de atividade, que, mensalmente, mostram publicamente o que somos no trabalho, sob o prisma estatístico? E, finalmente, estamos viciados em debater questões nas famosas listas de discussão via internet? Por todo o exposto, é preciso clamar a atenção das organizações, independente do seu porte, para que se conscientizem da necessidade de oferecer um ambiente de trabalho íntegro, onde as jornadas de trabalho sejam respeitadas, assim como o direito às férias e aos descanso semanais remunerados. Não apenas isto, mas que o direito à desconexão seja respeitado: Isso inclui o envio de mensagens, e-mails, recebimento de ligações, pedidos de execução de tarefas nos momentos de descanso do trabalhador.
Por Dra. Ana Paula Zago Gonçalves
Comments