O pagamento do tempo de deslocamento após a Reforma Trabalhista
“(...) as horas de deslocamento devem continuar sendo pagas, nos mesmos moldes de antes da Reforma Trabalhista, por se coadunar melhor com os princípios basilares do nosso Ordenamento Jurídico atinentes às relações de trabalho e, em especial, com a nossa Carta Magna, norma maior sob a qual estão sujeitas todas as demais normas do Ordenamento Jurídico (...)”.
Antes da entrada em vigor da Lei n° 13.467, em 11 de novembro de 2017, que inaugurou a chamada “Reforma Trabalhista”, o regramento relativo ao tempo gasto pelo empregado com deslocamento entre sua residência e o local de trabalho, e vice-versa, as chamadas horas in tittine, estava contido ao teor do parágrafo §2°, do artigo 58, da CLT, que previa o seguinte:
(...)
§ 2o O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução. (Grifo nosso).
Complementando o referido artigo, a Súmula 90 do Egrégio TST, vigente, dispõe que:
HORAS "IN ITINERE". TEMPO DE SERVIÇO (incorporadas as Súmulas nºs 324 e 325 e as Orientações Jurisprudenciais nºs 50 e 236 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho. (ex-Súmula nº 90 - RA 80/1978, DJ 10.11.1978).
II - A incompatibilidade entre os horários de início e término da jornada do empregado e os do transporte público regular é circunstância que também gera o direito às horas "in itinere". (ex-OJ nº 50 da SBDI-1 - inserida em 01.02.1995).
III - A mera insuficiência de transporte público não enseja o pagamento de horas "in itinere". (ex-Súmula nº 324 – Res. 16/1993, DJ 21.12.1993).
IV - Se houver transporte público regular em parte do trajeto percorrido em condução da empresa, as horas "in itinere" remuneradas limitam-se ao trecho não alcançado pelo transporte público. (ex-Súmula nº 325 – Res. 17/1993, DJ 21.12.1993).
V - Considerando que as horas "in itinere" são computáveis na jornada de trabalho, o tempo que extrapola a jornada legal é considerado como extraordinário e sobre ele deve incidir o adicional respectivo. (ex-OJ nº 236 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001). (Grifo nosso).
Assim, certo é que antes da Reforma Trabalhista, o tempo de deslocamento do empregado era contado como jornada de trabalho e deveria ser pago. Inclusive, se somado este tempo à jornada, ocorre-se a extrapolação da jornada, deveria ser pago adicional de hora extra de, no mínimo 50%.
A seguir, com o advento da Lei n° 13.467/17, o § 2°, do art. 58 da CLT, recebeu nova redação, ipsis litteris:
§ 2º O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador. (Grifo nosso).
Destarte, o regramento foi alterado, passando a estabelecer que o tempo de deslocamento não é mais computado na jornada de trabalho e que, portanto, o pagamento desse tempo não é mais obrigatório como era antes.
Cumpre assinalar que, o entendimento prevalecente no Ordenamento Jurídico é o de que a Lei n° 13.467 (e então também o atual regramento referido acima), não alcança os fatos ocorridos antes de 11 de novembro de 2017, quando passou a vigorar a lei nova.
Nesse sentido, especificamente em relação ao pagamento de horas de descolamento ou horas in itinere, veja-se a ementa de recente julgado proferido pelo Respeitável Tribunal Regional do Trabalho da 3° Região, a seguir:
HORAS IN ITINERE. DIFICULDADE DE ACESSO AO LOCAL DE TRABALHO. PERÍODO ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017. A dificuldade de acesso ao local de trabalho enseja o pagamento de horas in itinere no período anterior à vigência da Lei nº 13.467/2017. (TRT-3 – RO 2. 0010302-13.2017.5.03.0090 – Nona Turma – Rel. Convocado: Marcio Jose Zebende – Disponibilização em 25/10/2019).
De outro norte, em relação aos contratos de trabalho iniciados antes da “Reforma Trabalhista” e que continuaram em curso após a vigência do novo regramento, a doutrina e a jurisprudência têm divergido quanto à aplicação das alterações trazidas pela Lei n° 13.467/17 e a supressão do pagamento das horas de deslocamento.
Especificamente em relação ao pagamento de horas in itinere, a seguir, colacionam-se julgados proferidos pelo E. TRT 3, ocasiões em que entendeu-se pela não aplicação do § 2°, do art. 58 da CLT, ao contratos de trabalho em curso quando do advento da Reforma, sob os fundamentos, entre outros, de contrariedade à previsão contida no art. 5°, inciso XXXVI, da CF e ao art. 6° da LINDB. Veja-se:
HORAS IN ITINERE. A novel Legislação Trabalhista não se aplica aos contratos vigentes anteriormente à sua vigência, porquanto, a teor do disposto no art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a lei em vigor terá efeito imediato e geral, desde que respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Aplicação do brocardo jurídico tempus regit actum. Por assim ser, a Lei 13.467/17, que suprime o direito às horas "in itinere", não alcança os contratos em curso no momento de início de sua vigência, tendo em conta o direito adquirido dos empregados de continuarem a fruir o direito garantido pelo ordenamento jurídico anterior. (TRT da 3.ª Região; PJe: 0011638-52.2017.5.03.0090 (RO); Disponibilização: 25/10/2018; Órgão Julgador: Decima Primeira Turma; Relator: Juliana Vignoli Cordeiro).
DIREITO INTERTEMPORAL. APLICAÇÃO DA LEI nº 13.467/17. CONTRATOS DE TRABALHO EM CURSO. OBSERVÂNCIA DO DIREITO ADQUIRIDO. HORAS IN ITINERE. A Lei nº 13.467/2017, comumente denominada "Lei da Reforma Trabalhista", ao alterar diversos dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho, entrou em vigor em 11 de novembro de 2017 e tem aplicação imediata e geral a partir de sua vigência, respeitado contudo, o direito adquirido dos empregados que tiveram seus contratos de trabalho rescindidos antes da entrada em vigor da referida lei e daqueles, cujos contratos de trabalho estavam vigentes antes da publicação da referida norma. Reforça este entendimento precedente do Supremo Tribunal Federal contido no julgamento do AI.292.979-ED/RS. Rel. Min. Celso de Melo, 2ª Turma, DJ 19.12.2002: "Os contratos submetem-se, quanto ao seu estatuto de regência, ao ordenamento normativo vigente à época de sua celebração. Mesmo os efeitos futuros oriundos de contratos anteriormente celebrados não se expõem ao domínio normativo de leis supervenientes. As conseqüências jurídicas que emergem de um ajuste negocial válido são regidas pela legislação em vigor no momento de sua pactuação. Os contratos - que se qualificam como atos jurídicos perfeitos (RT 547/215) - acham-se protegidos, em sua integralidade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República. Doutrina e precedentes. - A incidência imediata da lei nova sobre os efeitos futuros de um contrato preexistente, precisamente por afetar a própria causa geradora do ajuste negocial, reveste-se de caráter retroativo (retroatividade injusta de grau mínimo), achando-se desautorizada pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivamente consolidadas. Precedentes". No mesmo sentido a doutrina do Ministro Luís Roberto Barroso (in: "Em algum lugar do passado. Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil"): "A garantia contra a retroatividade da lei prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição, impede que os contratos, mesmo aqueles de trato sucessivo, ou quaisquer outros atos jurídicos perfeitos, sejam afetados pela incidência da lei nova, tanto no que diz respeito à sua constituição válida, quanto no que toca à produção de seus efeitos, ainda que estes se produzam já sob o império da nova lei...". Neste diapasão, o direito assegurado aos contratos de trabalhos dos empregados que estavam em curso quando da entrada em vigor da Lei nº 13.467/17 (em 11.11.2017), ao cômputo na jornada de trabalho, do tempo dispendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno (horas in itinere), por qualquer meio de transporte, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, quando o empregador fornecer a condução, continua existindo, mesmo no período posterior a 10.11.2017, face a observância do direito adquirido dos empregados. (TRT da 3.ª Região; PJe: 0011539-82.2017.5.03.0090 (RO); Disponibilização: 05/10/2018, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 2775; Órgão Julgador: Oitava Turma; Relator: Sercio da Silva Peçanha).
DIREITO INTERTEMPORAL DO TRABALHO. REFORMA TRABALHISTA. HORAS IN ITINERE. DIREITO ADQUIRIDO. ART. 912 DA CLT. FATICIDADE E VALIDADE DA RELAÇÃO DE EMPREGO. 1. O Direito do Trabalho tem regra própria de intertemporalidade. Nos termos do artigo 912 da CLT, os dispositivos de caráter imperativo terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas, antes da vigência da Lei 13.467/2017. Constitui preceito de caráter imperativo, na literalidade do caput do artigo 444 da CLT, "tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho". 2. Dispositivo que tenha por finalidade reduzir o conceito de tempo à disposição do empregador, tal como o disposto no § 2º do art. 58, com a redação dada pela Lei 13.467/2017, tem, portanto, eficácia somente em relação aos contratos novos, firmados a partir de 11 de novembro de 2017, pois não objetiva proteger o trabalho, senão atender anseios do mercado de investimento. 3. Conjecturas a respeito da conveniência da aplicação, aos contratos em curso, do referido dispositivo previsto pela reforma trabalhista, ante a potencialidade de dispensa massiva, para contratação de novos empregados, pertencem à ordem da faticidade da assimetria entre capital e trabalho, não ao plano da validade jurídica. Tal racionalidade importaria em tornar absolutamente ineficaz, por exemplo, o artigo 468 da CLT e, em última análise, até em privar o próprio Direito do Trabalho de todo efeito, porquanto o vínculo jurídico de emprego funciona e subsiste sob uma incessante e recursiva relação de coação econômica, que transcende os limites da contratação, para situar-se no plano das relações sociais. (TRT da 3.ª Região; PJe: 0011599-55.2017.5.03.0090 (RO); Disponibilização: 04/10/2018, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 974; Órgão Julgador: Primeira Turma; Relator: Jose Eduardo Resende Chaves Jr.).
ADVENTO DA LEI N. 13.467/17. ALTERAÇÕES NO § 2º, DO ARTIGO 58 DA CLT. APLICAÇÃO IMEDIATA, RESPEITADAS AS SITUAÇÕES CONSOLIDADAS ATÉ A ENTRADA EM VIGOR - Em matéria de direito intertemporal, preservam-se o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, a teor dos artigos 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal e 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Mas não se pode confundir "direito adquirido" com mera "expectativa de direito". Desde o advento da Lei n. 13.467/17, com as alterações perpetradas no §2º do artigo 58 da CLT, as horas in itinere não são mais computadas na jornada laboral, nem consideradas como tempo à disposição do empregador. E seja relativamente aos novos contratos de trabalho, seja quanto aos vínculos que, mesmo iniciados anteriormente, se extinguiram após a entrada em vigor da Lei n. 13.467/17, tem incidência imediata a expressa previsão legal, a partir do dia 11/11/2017, não comportando, contudo, aplicação retroativa: "As prestações contratuais já consolidadas não se afetam, porém as novas prestações sucessivas submetem-se à nova lei" (DELGADO, Maurício Godinho). (TRT da 3.ª Região; PJe: 0011665-35.2017.5.03.0090 (RO); Disponibilização: 25/07/2018, DEJT/TRT3/Cad.Jud, Página 723; Órgão Julgador: Quinta Turma; Relator: Julio Bernardo do Carmo).
Fora os entendimentos do Respeitável Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região pela não extinção do direito ao recebimento das horas de deslocamento pelos empregados com contrato em curso após a nova redação do §2°, do art. 58, da CLT, outro argumento defendido é o de que o referido parágrafo não pode ser aplicado porque vai de encontro a princípios basilares do Ordenamento Jurídico e afronta diretamente a Constituição da República. Explico.
Para fundamentar este ponto, serão utilizados, dentre outros, alguns dos argumentos apresentados por Renato da Fonseca Janon - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Lençóis Paulista (SP) e Cynthia Gallera Garcia - analista judiciário do TRT-15, ao discorrerem sobre o tema em texto publicado na Revista Consultor Jurídico, Reforma trabalhista não acabou com o direito às horas in itinere, em 04 de dezembro de 2018¹.
Inicialmente, a supressão do pagamento de horas in itinere fere o princípio constitucional da “vedação do retrocesso social”, que impede a revogação dos direitos sociais já conquistados pela sociedade quando não houver correspondente meio de compensação do prejuízo advindo da anulação do direito.
Cumpre observar o disposto no caput, do art. 7°, da Carta Magna: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” (Grifo nosso).
Assim, fora aqueles previstos nos incisos do artigo 7°, da CF, demais direitos devem, como regra, visar a melhoria da condição social do trabalhador. Nesse sentido, a ministra Kátia Magalhães Arruda, do TST, em sede de Agravo de Instrumento, manifestou-se nos seguintes termos:
(...) o art.7º. da Constituição Federal revela-se como uma centelha de proteção ao trabalhador a deflagrar um programa ascendente, sempre ascendente, de afirmação dos direitos fundamentais. Quando o caput do mencionado preceito constitucional enuncia que irá detalhar o conteúdo indisponível de uma relação de emprego, e de logo põe a salvo 'outros direitos que visem à melhoria de sua condição social', atende a um postulado imanente aos direitos fundamentais: a proibição de retrocesso. (...). (TST - AIRR 0000184-47.2014.5.24.0106, Rel. Min. Kátia Magalhães Arruda)¹.
Ora, a supressão do pagamento das horas de deslocamento do trabalhador representam grave retrocesso social e, fora consistir em desrespeito ao caput, do art. 7°, da Carta Magna, ainda desrespeita fundamento e princípios constitucionais, respectivamente contidos nos artigos 1°, incisos III e IV, e artigo 4°, inciso II, ambos da Constituição Federal.
A seguir, impende trazer ao discurso ainda, o disposto no art. artigo 3º, ”c”, da Convenção 155, da OIT, “Convenção sobre Saúde e Segurança dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho”, incorporada pelo Brasil em 1.994, mediante o Decreto n° 1.254, que assim dispõe:
Artigo 3
Para os fins da presente Convenção:
c) a expressão "local de trabalho" abrange todos os lugares onde os trabalhadores devem permanecer ou onde têm que comparecer, e que esteja sob o controle, direto ou indireto, do empregador; (...).
Sobre a força normativa da referida Convenção, em que pese haver divergências, o STF em sede de julgamento de Agravo de Instrumento em Recurso de Revista, no mês de Outubro de 2019, reconheceu status supralegal à norma, veja-se:
Ressalte-se que as Convenções 148 e 155 foram incorporadas no nosso ordenamento jurídico e admitem a hipótese de cumulação dos adicionais e estabelecem critérios e limites dos riscos profissionais em face da exposição simultânea a vários fatores nocivos:
(Omissis...)
As convenções possuem status supralegal, ou seja, estão acima da lei interna e abaixo da Constituição, tornando inaplicável a legislação infraconstitucional com elas conflitante, pois as convenções, ao serem ratificadas: (Omissis...). (Grifo nosso). (TST - Processo:AIRR - 1001650-64.2014.5.02.0464 - Orgão Judicante: 8ª Turma - Relatora: Dora Maria da Costa - Julgamento: 23/10/2019 - Publicação: 25/10/2019).
Com o devido respeito a argumentos contrários, entende-se que, ao sair de sua residência e deslocar-se para o trabalho e vice-versa, o empregado já está à disposição e sob ordem do empregador, pois é este quem determina os dias, horários e local de comparecimento do empregado.
Assim, em face dos motivos expostos neste breve artigo, entende que as horas de deslocamento devem continuar sendo pagas, nos mesmos moldes de antes da Reforma Trabalhista, por se coadunar melhor com os princípios basilares do nosso Ordenamento Jurídico atinentes às relações de trabalho e, em especial, com a nossa Carta Magna, norma maior sob a qual estão sujeitas todas as demais normas do Ordenamento Jurídico.
Referências:
¹ “Reforma trabalhista não acabou com o direito às horas in itinere”. Renato da Fonseca Janon - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Lençóis Paulista (SP) e Cynthia Gallera Garcia - analista judiciário do TRT-15. 04 de dezembro de 2018. Revista Consultor Jurídico. Endereço eletrônico: <https://www.conjur.com.br/2018-dez-04/opiniao-reforma-trabalhista-nao-acabou-horas-in-itinere#sdfootnote4anc>. Acesso em 26 de novembro de 2019.
Artigo escrito por
Iara Vanzelotti de Carvalho
Advogada, com Especialização em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário em curso. Militante nas searas trabalhista e previdenciário em Minas Gerais.
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